terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Sobre a maior das mentiras

Entre os inúmeros acontecimentos do ano de 2012, um dos mais destacados foi a instituição da Comissão Nacional da Verdade em maio. Várias comissões estaduais para auxiliá-la foram criadas, inclusive em Alagoas. Mas infelizmente essa não saiu do papel. Em outubro, sob a orientação do professor Roberto Amorim, publiquei uma reportagem a respeito no Infoca, um portal laboratório para publicação de conteúdo do curso de Jornalismo do CESMAC que reproduzo abaixo. Nada do que foi reportado mudou. A mentira perdura...



Quanto tempo dura uma mentira?

Gastone Beltrão, uma das vítimas da ditadura militar / Foto Arquivo

Quanto tempo uma família pode esperar para enterrar um pai, mãe, filho, tio ou sobrinho desaparecido? Quanto tempo uma família pode conviver com uma versão falsa sobre a morte de um parente? Quanto tempo um país pode fingir que não torturou e matou sua gente? Quanto tempo dura uma mentira?

Há 48 anos que um sem número de famílias brasileiras convivem com esses questionamentos. Há 48 anos que o Brasil finge que o período de 1964 a 1988 foi um período qualquer. Responder a essas perguntas é o objetivo central da Comissão Nacional da Verdade e das comissões estaduais.

Criada pela Lei 12528/2011 e instituída em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade tem por finalidade desvendar os crimes cometidos contra os Direitos Humanos por parte do Estado brasileiro no período da ditadura militar entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Sem caráter punitivo, a Comissão tem o poder de convocar para depor autoridades do período militar como forma de obter esclarecimentos acerca de localização de corpos, métodos de tortura e documentos em geral sobre os bastidores daquele período.

Oficialmente estima-se que existam cerca de 500 casos de desaparecidos políticos no país, mas o número deve aumentar. No último dia 26 de setembro a Secretaria de Direitos Humanos enviou relatório à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça revelando 1.196 casos de trabalhadores rurais assassinados ou desaparecidos por conta de disputas políticas e fundiárias. Essas pessoas teriam ligação com as Ligas Camponesas, organizações ligadas a Igreja Católica que combatiam a ditadura militar.

Em abril deste ano foi aprovada na Assembleia Legislativa do Estado a criação da Comissão Estadual da Verdade. A lei é de autoria do deputado Judson Cabral (PT) tem a missão de apurar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro em Alagoas auxiliando a Comissão Nacional da Verdade. Ambas têm dois anos para apresentar os resultados.


Mas até agora em Alagoas nada saiu do papel. A indicação dos membros da Comissão Estadual é de responsabilidade do governador Teotônio Vilela Filho, que parece não dar a devida importância ao assunto devido à demora. Postura muito diferente a do pai, o menestrel das Alagoas, que morreu combatendo a ditadura militar e o retorno da democracia no país.

Outro problema que a Comissão deve encontrar é o acesso aos documentos oficiais da época. Desde dezembro de 2010 existe uma lei que determina que toda documentação seja repassada ao Arquivo Público do Estado, mas até agora nenhuma folha foi entregue.

Violações dos Direitos Humanos

“Vamos examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura militar”, disse o deputado estadual Judson Cabral. Para ele, Alagoas deve contribuir com a elucidação dos crimes dos militares no país. Cabral teve a iniciativa de criar a Comissão Estadual por presidir a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e ter acompanhado as ações repressivas da ditadura nos tempos em que frequentava a Universidade Federal de Alagoas.

Já para o historiador Alberto Saldanha da Universidade Federal de Alagoas, as comissões locais somente contribuirão com a Comissão Nacional se tiverem condições estruturais e políticas necessárias para atuar. Sobre a possibilidade de haver encobrimentos, por conta dos diversos interesses envolvidos nas comissões estaduais, Saldanha enfatiza que caberá aos setores organizados da sociedade exercerem a fiscalização.

“É claro que existem segmentos que não querem a apuração. Portanto, cabe a todos aqueles comprometidos com o resgate da verdade acompanharem desde o início os trabalhos das comissões locais.”

Sobre as condições de trabalho da comissão estadual, Saldanha relembra que desde o final de 2010 existe um decreto do Governo do Estado, 9.228 de 13 Dezembro de 2010, determinando que no prazo de 180 dias toda a documentação relacionada ao período do Regime Militar, existente em órgãos públicos fossem recolhidos ao Arquivo Público do Estado de Alagoas – APA e que até agora nada teria sido feito, apenas uma mudança na direção do Arquivo.

“Se a Comissão da Verdade local depender do apoio técnico do APA ela não ira a lugar nenhum”, ressalta, “Por isso, deve se exigir do Governo do Estado a infraestrutura ideal para o bom funcionamento da Comissão, caso contrário ela corre o risco, após o prazo de 02 anos, não ter nada por relatar”.

Para Maria Betânia Nunes Pereira, advogada da Rede Nacional de Advogados Populares – RENAP, a Comissão Nacional da Verdade trará um ganho enorme à sociedade brasileira e ela espera que a comissão estadual de fato ajude a resgatar a verdade sobre esse período de nossa História.

Sobre a composição da Comissão Estadual da Verdade é discurso comum a necessária vinculação dos componentes com o período da ditadura militar e com a defesa dos direitos humanos. Para Judson Cabral, os sete membros escolhidos pelo governador devem ser idôneos, de conduta ética, reconhecidamente identificados com a defesa da democracia e dos direitos humanos. A advogada Betânia segue na mesma linha e acrescenta “que não sejam revanchistas”.

Já o professor Alberto Saldanha coloca a importância de ter pessoas de organizações vinculadas a defesa dos Direitos Humanos e “não deve ser uma comissão unicamente de representantes do Estado”.

Para ambos, o que mais lhes preocupa é quando se dará o início dos trabalhos das Comissões.

Resistência à ditadura

Na metade do século XX, o Brasil já vivia momento conturbados em sua História. Poucos eram os períodos de normalidade democrática. Mas a ditadura militar foi o auge do autoritarismo nacional e como era de se esperar, insurgentes apareciam em todos os cantos do país. Em Alagoas não foi diferente.

“Aos 16 anos, em 1966, fui a um congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – Ubes e a partir daí comecei a militar politicamente. Ingressei na Ação Popular”, lembra Raul Pinto Paes, um dos principais militantes da esquerda alagoana no período.

Raul atuava no movimento estudantil, com destaque para sua atuação no colégio Moreira e Silva. “Lá o movimento sempre teve muita força. Quando mataram o Edson Luís no Rio de Janeiro, organizamos aqui o 'Levante do Cepa'. Desde então fiquei bastante visado pela ditadura”. Porém, Raul gosta sempre de destacar que suas ações eram pacíficas “sempre fiz movimento pacífico com panfletagens e agitação”.

Apesar de estudante, Raul era um dos militantes mais procurados pelo regime militar em Alagoas. Para não ser preso precisou fugir para o Maranhão, onde viveu clandestinamente como vendedor de seguros e vivendo em repúblicas juntamente com outros vendedores.

Mesmo com a distância e a clandestinidade, Raul sempre conseguia ficar sabendo dos acontecimentos em Alagoas, das prisões e mortes de militantes. Mas em nenhum momento aquelas notícias lhe tiravam a vontade de combater a ditadura militar “aquilo me causava indignação. Me dava mais vontade de lutar contra o regime militar. As mortes que mais me abalaram foram a de Gastone Beltrão, Jayme Miranda e Odijas Carvalho. Odijas, inclusive, era meu vizinho.”

Já o professor universitário Amundson Portela, lembra que em 1969, estudante do Colégio Marista, pichava os muros da escola com “abaixo a ditadura” e que por conta da influencia de seus pais teve uma “expulsão branda” do colégio. “De lá fui para o Liceu Alagoano. Ele funcionava onde hoje é a Secretária Estadual de Educação. Lá fui recrutado pelo Raul Pinto Paes e entrei para a AP.”

Sua atuação era basicamente o de agitação e propaganda, além de organizar reuniões. Sempre como foco nas atividades de rua denunciar as prisões e as mortes da ditadura. Amundson nos lembra que não chegou a ser preso, mas sempre se escondia em casa de amigos. “Depois que Raul precisou fugir para o Maranhão, eu diminuí minha atuação, mas a notícias das prisões e assassinatos me causavam muita revolta.”

“Só voltei a atuar na linha de frente por ocasião da criação da Sociedade Alagoana de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), em 1977, na qual fui o tesoureiro da primeira diretoria”, lembra.

Tanto Raul Paes quanto Amundson Portela, ex-militantes da Ação Popular possuem grandes expectativas com a Comissão Nacional da Verdade e com a comissão estadual. Para eles, existem casos em Alagoas emblemáticos que precisam ser revelados de fato para que a sociedade dê o devido valor aos militantes mortos pela ditadura. Raul inclusive, destaca a atuação já iniciada de Comissão Estadual em Pernambuco “Recentemente, estive em Recife para uma homenagem ao Padre Antônio Henrique Pereira Neto. A Comissão da Verdade de Pernambuco desvendou sua morte. Ele ajudava os militantes de esquerda a lutar contra a ditadura.”.

Raul também destaca que em Alagoas não haviam muitos militantes, na verdade conseguiam “mobilizar setores da classe média e até filhos dos coronéis”, daí o estardalhaço. “Parecíamos maiores do que éramos”, completa.

Já Amundson destaca que a Comissão Estadual da Verdade pode ajudar a fazer justiça inclusive em casos como o de Marcelino Máximo Dantas da Silva. Preso e torturado na prisão do Derby, bairro de Recife. Depois foi jogado na sarjeta com o ombro quebrado, onde fora encontrado. Por conta da prisão não pôde terminar seu curso de medicina. “Ele ainda está vivo, mas aquilo mudou os rumos de sua vida de forma determinante”, ressalta.

Todos os entrevistados avaliam este como o melhor momento para a elucidação dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro entre 1964 e 1988. Mesmos aqueles que não foram perseguidos, mas que desejam que nosso passado seja de fato conhecido estão esperançosos com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.

O fato da Presidente da República, Dilma Rousseff, ter sido presa e torturada pela ditadura militar é, como afirma Raul Paes, “o melhor momento” para apurar as barbaridades cometidas naquele período. É essa a expectativa desde o deputado Judson Cabral, autor da Lei que cria a Comissão Estadual da Verdade, passando pela a advogada de militante dos direitos humanos, Maria Betânia, pelo historiador Alberto Saldanha e pelo ex-militantes contra a ditadura militar Raul Paes e Amundson Portela.

“Não podemos andar para frente sem sabermos de fato de onde viemos” disse Maria Betânia. Já Raul e Amundson vão além, para eles desvendar os crimes cometidos pelos militares inibirão que outros desse tipo voltem a acontecer no país. “Acuar pessoas que ainda possam existir que simpatizem com aquelas práticas”, ressaltam.


Judson Cabral, autor da Lei da Comissão Estadual da Verdade / Foto Jonathan Lins 
Raul Paes lutou contra a ditadura militar em Alagoas / Foto Jonathan Lins
Amundson Portela, outro lutador pelo retorno da democracia / Foto Jonathan Lins
Corpo de Jayme Miranda nunca foi encontrado / Foto Arquivo
Odijas Carvalho foi morto pelos militares em Pernambuco / Foto Arquivo
Alberto Saldanha: "As comissões precisam ter condições estruturais e políticas" / Foto: internet
Maria Betânia: "Composição sem revanchismo"



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